terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

#AskHerMore (pergunte mais a ela)

Pergunte mais a ela

Já no tapete vermelho que antecede a cerimônia do Oscar, a atriz Reese Witherspoon demonstrava o quanto celebrações de Hollywood podem conter de político, para além do puro entretenimento.
Entrevistada ao vivo por um repórter do canal americano ABC, a atriz explicou o sentido da campanha #AskHerMore (pergunte mais a ela), criada com o propósito de estimular a formulação de questões menos superficiais para mulheres em eventos dessa natureza.
"Esse é um movimento para dizer que somos mais do que nossos vestidos", afirmou Witherspoon, para em seguida concluir: "É difícil ser uma mulher em Hollywood, ou em qualquer indústria".
No primeiro plano, a declaração pode contrastar com a imagem glamorosa que o cinema americano projeta de suas estrelas, mas a crítica ao sexismo nada tinha de fortuito. Pouco depois, o tema seria retomado num dos momentos de grande destaque da festa.
Ao receber a estatueta pelo papel coadjuvante em "Boyhood", a atriz Patricia Arquette lançou seu manifesto: "É a nossa hora de ter igualdade salarial de uma vez por todas, e iguais direitos para as mulheres nos Estados Unidos".
Ressalvado o fato de que essa luta precisa existir em todos os países, o discurso de Arquette fez jus aos aplausos entusiasmados de Meryl Streep. Embora o movimento feminista batalhe pela equiparação de vencimentos há mais de 50 anos, poucas vezes a bandeira esteve sob tantos holofotes.
Não se trata apenas de remuneração, sem dúvida; a desigualdade de gênero deve ser combatida em todas as suas dimensões. Para continuar com Hollywood: em 87 anos de história, apenas uma mulher levou o Oscar na categoria "melhor diretor(a)", e em apenas 15% dos filmes atrizes desempenharam os papéis principais.
Quanto aos salários, a discussão ganhou força no final do ano passado, quando vazaram e-mails internos da Sony. Descobriu-se, na ocasião, que a premiada Jennifer Lawrence teria direito a uma parte menor dos lucros proporcionados pelo filme "Trapaça" do que seus colegas masculinos.
A indústria cinematográfica poderia dizer que apenas reproduz prática de quase todos os setores da economia. As mulheres de fato recebem menos do que os homens, e amiúde surge o argumento de que a diferença decorre dos desafios impostos pela maternidade.
Conciliar o trabalho com a criação dos filhos não é fácil, mas não está escrito em pedra que a tarefa deve ser sempre da mãe. Se, no entanto, ainda hoje muitos insistem em naturalizar uma questão que é sobretudo social, então a fábrica de fantasia do cinema pode ter muito a contribuir nesse debate. Folha, 24.12.2015.
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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

'De Menor' rejeita fórmula fácil e dá fôlego ao cinema nacional

CRÍTICA - DRAMA

'DE MENOR' PREFERE O ATRITO ENTRE OS PERSONAGENS CENTRAIS, MAS TAMBÉM DELES COM AS FORÇAS DA LEI E DA GRANA, QUE OS ARRANCAM DO NINHO

CÁSSIO STARLING CARLOSCRÍTICO DA FOLHA
Um ano depois de dividir o prêmio principal do Festival do Rio, "De Menor" chega ao circuito como mais um passo adiante no processo de oxigenação do cinema brasileiro.
Como "O Lobo Atrás da Porta", com o qual compartilhou a vitória, o longa de estreia de Caru Alves de Souza equilibra-se entre o drama individual e a tragédia social. Além disso, ambos metem o dedo nas nossas feridas sem assumir posturas de donos da verdade.
Seus protagonistas, Helena e Caio, vivem uma intimidade que sofre uma ruptura e expõe uma fratura. Antes disso, o filme convoca o espectador a construir sentidos em vez de nos impor um único por meio do ultradidatismo que ignora o valor da surpresa e da descoberta.
Em vez de seguir uma trama, "De Menor" prioriza os nós na forma de dúvidas, mas também de abraços, afagos e frases ditas em meio tom.
Mais velha, a personagem feminina, uma advogada, expressa atitudes maternais também em relação a seus clientes, jovens expostos ao risco e à marginalização. O jovem, por sua vez, é rude e fora do controle, a ponto de romper o limite da legalidade.
No lugar de conflito de manual de roteiro, "De Menor" prefere o atrito entre os personagens centrais, mas também deles com as forças da lei e da grana, que os arrancam do ninho, deixando-os desprotegidos.
Como no desesperado longa de Fernando Coimbra, o lar não significa mais um porto seguro e a ideia de ordem ligada à família foi por água abaixo.
Ambos são demonstrações de que o novo cinema brasileiro não se resume a promover o riso fácil nem às ousadias experimentais ignoradas pelo público. Ele também busca com ficções maduras avançar em direção à maioridade.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Cineasta narra transformações da China Com filmes entre documental e ficção, Jia Zhangke diz que atores sem experiência têm rostos mais 'maleáveis'

Premiado em Cannes, diretor chinês ganha mostra que começa nesta terça (12) no Belas Artes, em SP

LUIZA FRANCODO RIO
Com 20 anos de carreira e prêmios de festivais como Cannes e Veneza no currículo, o cineasta chinês Jia Zhangke diz que gosta mesmo é do amadorismo.
"Gosto de trabalhar com roteiros abertos, atores amadores e improvisação, por uma questão de inspiração", afirma o diretor, homenageado na mostra "Jia Zhangke, A Cidade em Quadro", que começa nesta terça (12), no Belas Artes, em São Paulo.
"Os atores amadores têm rostos mais maleáveis. Dá para perceber uma história por trás, imaginar como era aquela pessoa aos 17, 18 anos, por exemplo", disse o diretor durante conversa com a Folha, na tarde do último sábado (9).
A programação traz mais de 20 filmes --entre eles, "Plataforma" (2000), "Em Busca da Vida" (2006) e "Memórias de Xangai" (2010). O evento promove também uma palestra do diretor na quarta-feira (13), às 16h.
O chinês, que tem 44 anos, passou a vida observando seu país se transformar de nação maoísta em capitalista.
Seus filmes narram a rotina de pessoas que vivenciam essas rápidas mudanças.
Nascido na província de Shanxi, onde transcorrem muitos de seus filmes, Zhangke diz que, mais jovem, a forma de arte que mais o interessava era a literatura.
"Eu organizei um grupo de poetas na escola, e chegamos a publicar um pequeno livro", diz, rindo discretamente.
Depois, passou a gostar de artes plásticas, que cursou na faculdade --também porque, segundo ele, era um curso mais fácil de entrar. "Mas ainda tinha um sentimento de insatisfação", comenta.
O estalo veio quando assistiu, durante a faculdade, ao filme "Terra Amarela" (1985), do diretor chinês Chen Kaige.
Zhangke afirma que ali se deu conta de que poderia retratar a China que conhecia. Inscreveu-se na Academia de Cinema de Pequim.
REALIDADE
O diretor diz não ver contradição entre o desejo de retratar a realidade e o estilo de seus filmes, que misturam o documental e a ficção.
"24 City" (2008), que fala sobre as gerações de pessoas que trabalharam numa fábrica estatal, mescla depoimentos de personagens reais e de atores, numa estratégia que lembra a usada em "Jogo de Cena" (2007), do documentarista brasileiro Eduardo Coutinho (1993-2014).
"Há diferentes maneiras de expressar os sentimentos humanos. A imaginação, as histórias fictícias, podem revelar a essência da pessoa", diz.
Para Zhangke, seu filme mais recente, "Um Toque de Pecado" (2013), vencedor do prêmio de melhor roteiro no em Cannes, em 2013, foi censurado pelo governo chinês exatamente por representar uma "realidade inegável", apesar de ser uma ficção.
O filme é baseado em histórias reais sobre as quais o diretor leu na rede social Sina Weibo, uma espécie de Twitter chinês.
Seus personagens são levados a cometer atos de violência por causa das duras circunstâncias da vida.
Zhankge refuta a ideia de que seus filmes sejam políticos, apesar de retratarem uma China excludente.
"Meus filmes são muito subjetivos. Eu narro a China através dos personagens. Meu objetivo é expressar o que sentimos e o que vivemos."

"A era dos filmes amadores está para voltar. É minha impressão mais vivaz. (...) eu insisto nesse ponto. (...) Decerto, eu coloco assim em questão aqueles que chamamos de profissionais do cinema'. Esses profissionais, que enxergam os princípios da profissão como regras absolutas e fazem brilhar ardentemente seus potenciais de mercado, perderam há muito tempo a capacidade de pensar."

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Dez produtoras concentram 34% das verbas para filmes nacionais

Pesquisa da Folha aponta que 2% das empresas são as mais favorecidas por recursos públicos

Para a Agência Nacional do Cinema, números refletem capacidade de realização e de atração de investidores
DE SÃO PAULO *
Dez produtoras brasileiras concentram 34% do financiamento público de filmes nacionais. O número representa 2% das mais de 400 produtoras que captaram recursos no Brasil na série histórica entre 1995 a 2012.
Os dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema), disponíveis no seu portal e tabelados pela Folha, também mostram uma concentração na arrecadação dos filmes.
Dez produtoras são responsáveis por 61% da renda arrecadada pelo cinema nacional e, dessas, seis também estão entre as que mais recebem fundos públicos.
Aspectos dos mecanismos de financiamento ajudam a entender esse fenômeno. Um deles é a classificação de produtoras feita pela Ancine. A agência permite às que fizeram mais filmes captar mais, mas o teto de recursos que elas podem usar ao mesmo tempo é de R$ 36 milhões.
Outra questão central é o fato de o principal método de financiamento utilizado pela Ancine ser o fomento indireto, via leis de incentivo: o governo permite a empresas privadas deduzir uma parcela de seu imposto de renda para ser investida em obras cinematográficas.
Nesses casos, a escolha dos projetos financiados é feita pelas empresas cujos recursos serão investidos. Em geral, grandes corporações não têm interesse em fomentar pequenas produções, preferindo se vincular a obras que lhes deem visibilidade.
Fábio Cesnik, advogado especializado em mídia e entretenimento, diz que "as empresas preferem investir em projetos que oferecem menos riscos para suas marcas". Ele conta que filmes com pouco apelo comercial buscam recursos em outras fontes.
Segundo Cesnik, cineastas podem financiar seus filmes, por exemplo, inscrevendo-os em editais públicos e captando pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), braço da Ancine alimentado por impostos da indústria audiovisual.
A Ancine respondeu, por meio de sua assessoria, que a posição no ranking é resultado da capacidade de realização das produtoras e das parcerias para atrair investidores.
A agência diz que "a série de 1995-2012 não reflete o atual momento do mercado audiovisual brasileiro, em que há um número maior de produtoras e oferta mais ampla de mecanismos de incentivo".

EM OUTROS PAÍSES

França
O investimento em 2009 foi equivalente a 15 vezes o brasileiro. O financiamento é feito via impostos sobre ingressos, canais de televisão e DVDs, e vai direto para o Centro Nacional de Cinematografia, que reinveste no setor audiovisual

Argentina
Há menos participação de empresas no processo de escolha. Parte do valor dos ingressos e DVDs vai para o Instituto Nacional de Cinema. Este prepara editais, que são a maior fonte de financiamento de filmes, em vez de leis de incentivo


Burocracia dificulta captação para filmes de independentes

Produtora de pequeno porte se diz prejudicada por não ter estrutura para gerir os pedidos de financiamentos
Conspiração Filmes, líder em renda no setor, mantém departamento especializado para levantar recursos
DE SÃO PAULO
Com base em dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema), a Folha apurou que 34% dos recursos públicos destinados a filmes nacionais ficam nas mãos de dez produtoras --2% do total de empresas do setor no país.
A concentração, para Cavi Borges, dono da produtora independente Cavídeo, deve-se em grande parte à burocracia para conseguir obter financiamento.
Na avaliação de Borges, produtoras de pequeno porte como a sua não têm estrutura especializada para cuidar dos pedidos e, assim são prejudicadas na competição.
"A gente acaba não tendo fôlego", conta. Como formas alternativas, a Cavídeo usa crowdfunding (financiamento coletivo) e faz parcerias com canais de televisão.
A falta de recursos, para Borges, também dificulta que as produções cheguem ao circuito comercial competitivo.
Em contraste, a Conspiração Filmes --segunda produtora que mais captou recursos de 1995 a 2012 e líder em renda no período-- possui um departamento só para gerir a captação de seus recursos.
Eliana Soárez, diretora-executiva de cinema da empresa, diz que produtoras grandes também precisam captar, já que, segundo ela, a maior parte dos lucros dos seus filmes vão para o exibidor e o distribuidor. Folha, 31.07.2014.



quinta-feira, 10 de abril de 2014

Um sonho intenso: a economia brasileira segundo o cinema científico de José Mariani

'Um sonho intenso' reforça a ideia permanente de Mariani: "Se Glauber dizia que o cinema não exclui a poesia, acrescento: o cinema não exclui a ciência."


Léa Maria Aarão Reis
Divulgação
É notável o feito do cineasta e documentarista José Mariani, que depois de produzir duas festejadas cinebiografias – sobre os cientistas Cesar Lattes e José Leite Lopes, e O longo amanhecer no qual conta a trajetória de Celso Furtado – agora se lança na tarefa de, no cinema, destrinchar para o público leigo os meandros de um tema complexo considerado assunto de especialistas e destinado a iniciados: a vida econômica do Brasil.
 
Filmado em 2012, editado ano passado e concluído há dois meses, portanto de atualidade incontestável, Um sonho intenso, com duração de uma hora e 42 minutos, é atraente e prende a atenção do espectador todo o tempo. Mais que uma sucessão das entrevistas de estrelas das ciências econômicas, de historiadores e sociólogos - Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, Adalberto Cardoso, Celso Amorim, Francisco de Oliveira, João Manuel Cardoso de Melo, Luiz Gonzaga Beluzzo, Lena Lavinas, José Murilo de Carvalho e Ricardo Bielchowsky – este, também consultor de roteiro, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalha para a Comissão Econômica para a América do Sul e Caribe, a Cepal –, a garimpagem das imagens é exemplar e contribui para a historiografia do período socioeconômico brasileiro de 1930, da era Vargas aos dias de hoje.
 

 
Com Um sonho intenso Mariani reforça esta sua ideia permanente: "Se Glauber Rocha dizia que o cinema não exclui a poesia, eu acrescento: o cinema não exclui a ciência."
 
De algum modo, este documentário de agora retoma, por outro viés O longo amanhecer, sobre a vida e o trabalho de Furtado. O foco é a política de estado desenvolvimentista exercida com tropeços, desde Getúlio Vargas (com as infelizes interrupções conhecidas - ditadura, liberalismo, política neoliberal) e sistematizada pelo economista paraibano.
 
"Num país em que a concentração de renda ainda é grande, a taxa de juros incompreensivelmente alta e o desenvolvimento econômico atravancado, as teorias e pensamentos de Celso Furtado são mais do que atuais," acredita o diretor José Mariani. 
 
"O filme é um desdobramento do primeiro. Desta vez o protagonista é o processo,  uma visão de história que inclui a história social, cultural e econômica; uma forma de ver a economia de modo orgânico."
 
As observações e as análises dos personagens que formam o elenco estelar do doc são apresentadas em linguagem direta, simples e natural chegando ao entendimento imediato do leigo. São testemunhos que prescindem de notas estatísticas (cada vez mais manipuladas por jornalistas especialistas, na TV), o que é um alívio, e não falam o idioma do economêscujo objetivo é desinformar e manter a sociedade analfabeta sobre o assunto.
 
No início, Carlos Lessa indaga: "O que é o Brasil, o que é ser brasileiro? O que o Brasil tem de paradigmas para mostrar para o resto do mundo?"
 
Em seguida, Maria da Conceição Tavares: "Podemos nos surpreender por uma visão menos preconceituosa - e mais moderna - do primeiro período da era Vargas, bem como por uma visão contemporânea do desenvolvimentismo do período JK, um período alegre, estimulante, com a bossa nova, a construção de Brasília, a marcha para o oeste."
 
Seguem-se análises sobre o governo do presidente João Goulart, em seguida sobre os anos da ditadura civil-militar e considerações a respeito dos seus atores, tanto militares como civis; as estatizações e os planos nacionais de desenvolvimento, que, segundo Carlos Lessa, "eram uma versão hiper autoritária da proposta de desenvolvimento industrial do passado".
 
De qualquer modo, a opinião geral é a de que se manteve sempre, nesse passado, os dois Brasis: o do sul-sudeste e o do norte e nordeste.
 
Maria da Conceição Tavares ressalta: "Não aconteceu nada com a miséria real. O país reproduzia o subdesenvolvimento à medida que o país se desenvolvia, pois este desenvolvimento era voltado apenas para as classes médias".
 
Na sequência, Um sonho intenso percorre o período das Diretas Já, a tragédia da inesperada morte de Tancredo Neves, o governo Sarney e seus sucessivos planos bolhas de sabão, a inflação galopante, o desastre Collor e os poucos pontos positivos do governo Itamar – o real, entre eles, diga-se, aceito com hesitação pelo então presidente.
 
As privatizações de Fernando Henrique Cardoso, "fruto de um vagalhão neoliberal, que não serviram para nada," observa João Manuel Cardoso de Melo. Para Carlos Lessa: (As privatizações) "acabaram com o projeto de soberania nacional".
 
Por fim, as análises dos dois consistentes mandatos de Lula os quais, segundo Carlos Lessa, "teve a felicidade de puxar os de baixo para cima e integrar estas pessoas ao mercado de consumo e ao mercado de crédito."
 
Concluindo o filme e fechando o ciclo, o mesmo Lessa lembra, sincero e com simplicidade: "Nós vivemos a armadilha do pensamento econômico" (...) "é razoável explicar o presente, mas é extremamente difícil pensar o futuro."
 
Para estes personagens do filme de Mariani não cabem mais na cena nem os oráculos nem os abutres da economia do país.


Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/Um-sonho-intenso-a-economia-brasileira-segundo-o-cinema-cientifico-de-Jose-Mariani/39/30697